18/03/2011

Ainda os à rasca

Como vão ver, se se derem ao trabalho de ler o texto em baixo, estes "à rasca", os "deolindos", como alguns dos que muito trabalham lhes chamam, não passam de uns betos, uns verdadeiros meninos da mamã, sempre tiveram tudo e não querem é vergar a mola.


"O DOUTOR DO 'CALL CENTER'




Ricardo Noronha, 31 anos e doutorado em História pela Universidade Nova de Lisboa, não tem tido uma vida fácil. Não é rico - a mãe é bancária e o pai técnico de marketing - e ainda vive numa república informal, na capital, onde cada um dos cinco habitantes tem um quarto. Já fez de tudo para sobreviver. "O meu primeiro emprego foi nas obras do Oeiras Parque, com ou sem capacete. Até ao dia em que caiu um andaime e saiu de lá um gajo morto..."


Para ter dinheiro para o Erasmus em Itália, apanhou pêssegos em França. Lembra-se dos intermediários de Trás-os-Montes, "vendedores de gado", com um enorme poder sobre os trabalhadores - o domínio da língua francesa. Gente que dorme em barracões, que só para quando o patrão manda e recebe o dinheiro por debaixo da mesa. "Estive lá dois meses. Uma coisa medieval, latifundiária. Em agosto, depois de um dia todo a arranhar - e a folha do pessegueiro arranha mesmo, dá comichão -, o patrão resolveu encher a piscina e nós ficámos sem poder tomar banho... Ganhei 2 mil euros."


Em Bolonha, por seis a oito euros por hora (ao domingo ganhava-se mais) limpou o chão de uma discoteca "gay, elegante, cara", pago sem recibos. "Mesmo assim estive à experiência, pois havia outro candidato... Vivia com 500 euros por mês." Vendeu ilegalmente cerveja fria à noite nas praças da cidade, fez-se amigo de marroquinos, andou em bicicletas alheias... "Vivi de esquemas", resume.


Mas nunca desistiu dos estudos. Após o curso veio o mestrado, e depois o doutoramento. "Montei palcos de concertos, fui office boy, trabalhei na Zara. Nunca tive um carro. Aliás, nem tenho carta", diz, com um mal disfarçado orgulho. A sua formação, porém, só tem dado para bolsas de estudo. A verdadeira "carreira profissional" de Ricardo é a de operador de call center, em horário noturno, com contratos a prazo, sem subsídios de férias ou Natal.


Da PT, da Vodafone, da Fujitsu, Ricardo sabe o que custa conseguir um lugar, mesmo que precário. "Vai-se aos sites do tipo Expresso Emprego e manda-se o currículo para empresas de trabalho temporário. Depois chamam-te para entrevistas e testes de perguntas cretinas: 'Qual a sua maior qualidade e o seu maior defeito?' Respondo: 'É a mesma: sou perfeccionista.' 'Descreva-se em três palavras.' Respondo: 'Sou assertivo, proativo e dinâmico.' É uma tanga: não te avaliam nem à tua competência. Triam maluquinhos. Mas fazes de conta que levas aquilo a sério e eles fazem de conta que é a sério..."


Depois fica-se com um contrato a termo certo e sem perspetivas - ou se é operador ou supervisor. Quase nunca se passa da empresa de trabalho temporário para o empregador de facto. Ganha-se entre 600 e 700 euros. Mas parte disso são prémios de produtividade, que também estão ligados à assiduidade, revela Ricardo. "Só recebes se fores 100% assíduo. Uma única falta, mesmo justificada, e retiram-te 20 por cento. Veem-se pessoas a trabalhar cheias de febre..."


A precariedade é isto. "Já tive mais de uma dezena de empregadores e nunca tive um contrato de trabalho que não referisse um acréscimo excecional da atividade", diz. "É uma enorme mentira. Vender roupa ou livros é excecional? Atender telefonemas? Para uma função permanente, contrato permanente! A precariedade é uma gigantesca ilegalidade, mas nós vivemos num conto de fadas. Andamos todos a fazer de conta. Os patrões, as autoridades e nós mesmos."

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