27/02/2010

Algarve, cinquenta anos atrás.

Aqui há uns tempos atrás, o Paulo Silva, enviou-me umas fotos deliciosas sobre o Algarve de há 50 anos. Desde já aviso, a quem ainda não o fez, que ver estas fotos pode ser extremamente perigoso, pelo que, se sofre do coração é melhor primeiro sentar-se e agarrar um copo de água ou de vinho para ir bebendo à medida que é vergastado, chega a ser doloroso ver o que estragámos, deixámos estragar, ou que por um simples encolher de ombros não conseguimos impedir que outros, irremediavelmente estragassem. Deixo-vos com dois ou três bons exemplos.

(Faro-O Hotel Eva, a ria e as docas)

Esta coisa do Algarve de há 50 anos fez-me lembrar os tempos em que cheguei a Messines, eu vinha, ainda miúdo do Alentejo profundo e, confesso, com os meus 5 anos de idade de então, ainda não tinha visto o mar. Foi por isso que ao chegar a Faro, no comboio que me trouxe de Vila-Viçosa acompanhado da minha mãe, ao chegar à beira da ria, prontamente me levantei em plena carruagem e gritando a plenos pulmões apontei “olha o Mar”!

(Armação de Pêra-junto ao casino)

Ao chegar a Messines mais tarde, ainda era o tempo de expressões que agora já caíram, era o tempo do “Dab, mas que jeite”, “do tá marafado” e daquela que mais surpresa me causou, “xoxa”, é que este termo no Alentejo tinha e tem, um significado bem diferente, “xoxa” em alentejano significa algo estragado, uma fruta podre o que em Messines não é o caso.


(Praia da Rocha)

"Caminho da Manhã

Vais pela estrada que é de terra amarela e quase sem nenhuma sombra. As cigarras cantarão o silêncio de bronze. À tua direita irá primeiro um muro caiado que desenha a curva da estrada. Depois encontrarás as figueiras transparentes e enroladas; mas os seus ramos não dão nenhuma sombra. E assim irás sempre em frente com a pesada mão do Sol pousada nos teus ombros, mas conduzida por uma luz levíssima e fresca. Até chegares às muralhas antigas da cidade que estão em ruínas. Passa debaixo da porta e vai pelas ruas estreitas, direitas e brancas, até encontrares em frente do mar uma grande praça quadrada e clara que tem no centro uma estátua. Segue entre as casas e o mar até ao mercado que fica depois de uma alta parede amarela. Aí deves parar e olhar um instante para o largo pois ali o visível se vê até ao fim. E olha bem o branco, o puro branco, o branco de cal onde a luz cai a direito. Também ali entre a cidade e a água não encontrarás nenhuma sombra; abriga-te por isso no sopro corrido e fresco do mar. Entra no mercado e vira à tua direita e ao terceiro homem que encontrares em frente da terceira banca de pedra compra peixes. Os peixes são azuis e brilhantes e escuros com malhas pretas. E o homem há-de pedir-te que vejas como as suas guelras são encarnadas e que vejas bem como o seu azul é profundo e como eles cheiram realmente, realmente a mar. Depois verás peixes pretos e vermelhos e cor-de-rosa e cor de prata. E verás os polvos cor de pedra e as conchas, os búzios e as espadas do mar. E a luz se tornará líquida e o próprio ar salgado e um caranguejo irá correndo sobre uma mesa de pedra. Á tua direita então verás uma escada: sobe depressa mas sem tocar no velho cego que desce devagar. E ao cimo da escada está uma mulher de meia idade com rugas finas e leves na cara. E tem ao pescoço uma medalha de ouro com o retrato do filho que morreu. Pede-lhe que te dê um ramo de louro, um ramo de orégãos, um ramo de salsa e um ramo de hortelã. Mais adiante compra figos pretos: mas os figos não são pretos mas azuis e dentro são cor-de-rosa e de todos eles corre uma lágrima de mel. Depois vai de vendedor em vendedor e enche os teus cestos de frutos, hortaliças, ervas, orvalhos e limões. Depois desce a escada, sai do mercado e caminha para o centro da cidade. Agora aí verás que ao longo das paredes nasceu uma serpente de sombra azul, estreita e comprida. Caminha rente às casas. Num dos teus ombros pousará a mão da sombra, no outro a mão do sol. Caminha até encontrares uma igreja alta e quadrada.


Lá dentro ficarás ajoelhada na penumbra olhando o branco das paredes e o brilho azul dos azulejos. Aí escutarás o silêncio. Aí se levantará como um canto o teu amor pelas coisas visíveis que é a tua oração em frente do grande Deus invisível."

Sophia de Mello Breyner Andresen
Livro Sexto (1962)"

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